sábado, 8 de janeiro de 2011

para uma moça que descontruiu seu castelo para construir uma casa real

Preciso começar com citações enxarcadas de sabedoria, bondade e sublimação do Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Depois sigo com minhas humildes palavreações...

"Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término, certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até o ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos dentro da gente..." (Guimarães Rosa)

"Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra. (Guimarães Rosa)


Os Três Mal-Amados
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

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Essa moça, ainda menina, com rosto de um filme antigo, que vai mexendo no coração da gente, vai abrindo aquele bauzinho secreto que temos lá no fundinho ,
e que, quando nos damos conta, ela nos arrebatou com sua doçura triste, sua brancura melancólica...

ela vivia num castelo lindo, rodeado de vidros intransponíveis... mas se meteu a sair dele, cair no mundo.
Resultado: o castelo ruiu, a redoma se estilhaçou e ela ficou a andar, andar, andar, girar, girar, girar procurando seu mundo de sonhos, de poesia e proteção.
Ainda não sabe: mas nunca mais o encontrará, porque quando isso se desfaz nunca mais é refeito.

Bem vinda à casa real, ao mundo das ilusões perdidas.
Mas agora muito bem acompanhada pela vida real....

5 comentários:

Marcos Boi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcos Boi disse...

Queria comentar o texto, mas não sei fazê-lo. Me contento em amá-lo. E amar é o meu comentário.

Elenice Rosa disse...

Excelente iniciativa!
Nem quero falar muito. O que comentar de suas verdades íntimas?
Que se confundem com as minhas? Pretensão.
Nós crescemos e nossas verdades, também. E a gente vai aprendendo a estranhar/gostar/sofrer com/de tudo isso. Mas as flores desabrocham, pode crer, menina!
bj
elenice.

Unknown disse...

Gostei da moça. É preciso muita coragem para transpor o que até então parecia intransponível. bjo, Van.

. disse...

...Desde que li, pela primeira vez este teu conto, volto nele todos os dias...Como se algo pudesse ter me escapado,fugido, ou as vezes com um desejo que haja mais linhas, uma continuação...o que virá depois...?
Parabéns! Vê-la tricotar um casaco anos atrás, me fez saber na hora que tuas mãos de fiandeira teciam mais que lã...